quarta-feira, 17 de junho de 2015
PCC encomenda música e manda “salve geral”
O Primeiro Comando da Capital (PCC), de dentro dos presídios, encomendou uma música ao rapper Cascão, integrante do grupo Trilha Sonora do Gueto, segundo o músico. A canção é um “salve geral” da facção criminosa, denunciando o Estado por descumprir a “Lei de execuções penais”, e alerta:
“Não adianta ocultar, nem tentar oprimir. Nóis tem gente espalhada em todo canto por aí.”
A iniciativa de “dar um salve” através de uma música lançada diretamente no Youtube [que até o fechamento desta matéria tinha ultrapassado, em 20 dias, mais de 150 mil visualizações] é inédita. O novo formato contrasta com o anterior, mais analógico, de distribuição de panfletos e cartas, explica Camila Nunes Dias, professora da Universidade Federal do ABC, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e autora do livro PCC – A hegemonia nas prisões e o monopólio da violência, uma das maiores especialistas no assunto.
“Essa música é uma mensagem para o Estado, uma espécie de alerta ao fato de que, apesar de estar tudo aparentemente ‘tranquilo’ no sistema prisional em São Paulo, eles estão lá", diz. "Uma espécie de lembrete das condições precárias em que essa ‘paz’ tem sido mantida nas prisões de São Paulo nos últimos anos e dos ‘fiadores’ dessa tranquilidade nas prisões do Estado”, explica Camila.
Cascão afirma que o pedido da música veio após o rapper ter recebido um dossiê com diversas reclamações de violação de direitos humanos dentro dos presídios. “O objetivo dos caras [PCC] é denunciar as mazelas lá de dentro, que é o que está na música. Todo mundo está me chamando de louco por ter feito essa música, mas eu não devo nada, cumpri minha parte, mas sei o que acontece lá dentro e conheço os caras, não posso negar isso”, afirma o rapper, que passou oito anos preso, entre os de 1991 e 1999, e viu a facção nascer e crescer dentro dos presídios.
No vídeo clipe produzido para divulgar a música, um homem encapuzado lê as reivindicações do PCC. “Queremos um sistema carcerário com condições humanas, não um sistema falido e desumano, no qual sofremos inúmeras humilhações e espancamento. Não estamos pedindo nada mais do que está na lei”, afirma o ator.
Na “W2 Proibida” (abaixo), Cascão lembra das imagens vazadas pelo SBT em outubro de 2014, que mostram o Grupo de Intervenção Rápida, atuante nos presídios paulistas, intervindo dentro da penitenciária de Presidente Venceslau II. No vídeo, a ação dos agentes do Estado provoca um incêndio em uma cela com presos dentro. Em seguida, todos são retirados do espaço e espancados.
O nome da música, “W2 Proibida” é uma alusão ao presídio Presidente Venceslau II, na cidade de mesmo nome, que seria com “W” [Wenceslau] na linguagem da facção. “Proibida” porque a unidade é de segurança máxima. Lá, é onde estão presos os líderes do PCC, entre eles o Marcola.
A música aponta o tom político e ideológico que remete à fundação do PCC, em 1993, alguns meses após o “Massacre do Carandiru”. O intuito era zelar pelos direitos humanos dos presos. No final do videoclipe, para não deixar dúvida do tom da mensagem, Cascão usa imagens de Nelson Mandela, Che Guevara, Martin Luhter King e Malcom X.
Camila alerta que esse discurso político “não necessariamente reflete as formas como essas relações são construídas e se desenvolvem”, lembrando o uso da violência, comum na atuação da facção. “Acho que o discurso político de legitimação é o elemento diferenciador do PCC em relação a outros grupos similares existentes no Brasil", diz. "Ele explica em grande medida a perenidade, estabilidade, a força e a hegemonia do PCC em São Paulo e o seu forte potencial de nacionalização”, avalia.
Para a professora, o que precisa ser analisado é que o discurso tem onde se ancorar. “Ele funciona porque encontra ressonância na experiência das pessoas a quem se dirige, a população prisional, especialmente, mas, também a toda população que vive em territórios pobres, periféricos e que na sua experiência cotidiana vivencia variadas formas de violação de seus direitos por agentes do Estado.”
A adesão à mensagem política nas periferias é confirmada por Cascão. “A filosofia do comando serve para a rua e para o sistema. Não existe separação, mano”. O rapper cita um exemplo usado na música para mostrar como “ideologicamente e politicamente atua o PCC”: a diminuição brutal no número de homicídios em São Paulo.
Com a queda de 3,4% nos homicídios dolosos [com intenção de matar] de 2014, em relação a 2013, São Paulo chegou a 10,06 assassinatos por grupo de 100 mil pessoas, o melhor índice desde 2001, quando o número era de 33,3, segundo números divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do estado (SSP).
O governador paulista, Geraldo Alckmin (PSDB), e sua equipe gostam de imputar à Polícia Militar e à Secretaria de Segurança Pública (SSP) a redução nos índices.
Por outro lado, o PCC assume a responsabilidade pela queda no número de homicídios dolosos. “Já não morre mais ninguém, nóis que fez acontecer”, afirma a letra de “W2 Proibida”, com Cascão, em primeira pessoa, inserindo-se na facção, embora negue que integre o “comando”. No ano de 2011, em gravação interceptada pela Polícia Civil, Marcola atacou Alckmin e pediu os louros à facção. "Há dez anos, todo mundo matava todo mundo por nada. Hoje, para matar alguém, é a maior burocracia [no PCC]. Então, quer dizer, os homicídios caíram não sei quantos por cento, aí eu vejo o governador chegar lá e falar que foi ele.”
Para Camila, Alckmin não tem motivos para se envaidecer. “Não me parece que houve uma revolução nas politicas de segurança estaduais que expliquem a queda de 70% e praticamente a ausência de mortes nos presídios atualmente", diz. "Para mim, a mudança na dinâmica do crime que envolve uma maior organização e a hegemonia de um grupo [o PCC] no controle da economia ilícita e muito mais plausível como forma de compreender esse fenômeno.”
O discurso empregado pelo PCC pode passar a ideia de que com o respeito aos direitos humanos, a facção encerraria, também, suas atividades dentro dos presídios e nas periferias. Cascão se esquiva de uma resposta definitiva. “O Estado ganharia muito, mano. O índice de reincidência seria muito menor, se respeitassem os presos. O cara vai lá para tirar uma cadeinha, só que é o seguinte, ninguém respeita ele. Apanha de carcereiro, tira castigo todo dia, não come, não toma banho. Acaba se filiando ao PCC”, conta o rapper.
Para Camila, há incoerência no discurso apresentado na música “W2 Proibida”. “Embora a música enfatize a violência presente na unidade prisional onde estão aqueles que são considerados pelo Estado como lideranças do PCC – e acredito que seja, de fato, como narrado ali – , tenho convicção de que outras unidades – CDPS, por exemplo – apresentam condições muito mais precárias em todos os sentidos – alimentação, condições físicas, atendimento à saúde, jurídico etc”, argumenta a pesquisadora, para quem o “comando” se alimenta da desgraça que condena.
“Desta forma, o PCC acaba por reproduzir uma forma de poder e de legitimar esse poder – os irmãos estão num sofrimento muito maior – que mantém sua capacidade de controle sobre a população carcerária", diz. "Ao manter a ordem, sem rebeliões, num sistema caótico como o paulista, o PCC, paradoxalmente, contribui para que o Estado possa continuar encarcerando e mantendo os presos tal como eles estão: sob o comando do Comando”, finaliza.
fonte: Carta Capital
créditos: Igor Carvalho
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